Delegado de Polícia no Estado de São Paulo desde 1989, Waldomiro Milanesi, teve envolvimento mais intenso com as questões relacionadas ao combate de roubo e furto de cargas em 2009, quando foi nomeado coordenador do Programa de Prevenção, Fiscalização e Repressão ao Furto, Roubo, Apropriação Indébita e Receptação de Carga – o PROCARGA. Nessa coordenação ficou até final de 2012, mas em 2019 retornou ao programa, permanecendo até o fim de 2022.
Segundo a última pesquisa divulgada pela Associação Nacional de Transporte e Logística (NTC&Logística) as cargas mais roubadas são os alimentos, seguidos de combustíveis. Por que esses itens são tão visados?
Os produtos que possuem maior fluidez, ou seja, os mais fáceis de serem introduzidos no ‘mercado ilícito’, como os alimentos, combustíveis, eletroeletrônicos, por exemplo, interessam mais à criminalidade, porque a rastreabilidade é mais difícil.
Agora, permita fazer um adendo: o Brasil não possui uma padronização nos registros das ocorrências policiais, ou seja, cada estado faz o seu ‘boletim de ocorrência’ como bem entende. O pior, é que a unificação desses dados cadastrados, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, apresenta muitas inconsistências, ou seja, não existe ainda no Brasil um ‘banco’ único de dados realmente confiável para análise.
Mas uma coisa é certa, existe uma incidência criminal elevada contra os modais de transportes, principalmente no rodoviário, até porque trata-se do maior vetor de transporte de cargas em circulação.
Qual é a pena para quem pratica esse tipo de crime?
No contexto de ‘roubo de carga’, destacam-se dois delitos mais frequentes: roubo (Artigo 157 do Código Penal) e a receptação (Artigo 180 do Código Penal).
O crime de roubo (assim considerado simples) tem pena de reclusão de quatro a dez anos, e multa, sendo que pode ter aumento de pena se: praticado por duas ou mais pessoas; quando mantém a vítima em seu poder restringindo sua liberdade; quando exercida com uso de arma branca e quando exercida com arma de fogo de uso permitido ou restrito e proibido.
Além de causas de aumento de pena, o crime também pode ser qualificado se houver violência empregada que resultar lesão corporal grave (pena será de 7 a 18 anos) ou houver violência empregada e resultar morte (pena será de 20 a 30 anos).
Para o crime de receptação simples, a pena é de 1 a 4 anos, e multa, enquanto para a receptação qualificada é prevista a pena de 3 a 8 anos.
Acredito que a questão não seja tanto com relação à pena para quem pratica esse tipo de crime, mas sim com relação aos benefícios que a pessoa presa detém (posterior à prisão em flagrante, à prisão preventiva ou à prisão temporária), numa liberdade provisória ou, após condenação, no livramento condicional.
Nesse aspecto, no Brasil o “tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (quarenta) anos” (Artigo 75 do Código Penal), mesmo se o sujeito cometer vários crimes que juntos ultrapassam esse limite.
Como o senhor vê a eficácia da Lei 15.315/2014 de São Paulo, que determina a cassação da inscrição no cadastro de contribuinte do ICMS de estabelecimentos que comercializem produtos roubados ou furtados?
Toda norma tem sua importância na medida da sua aplicabilidade e efetiva eficácia. Nesse sentido, a Lei Estadual n° 15.315, de 17 de janeiro de 2014, veio contribuir com as forças de segurança pública no combate ao roubo de carga, principalmente, pela reciprocidade das informações entre os órgãos. Nesse sentido, para que a eficácia da Lei atinja sua plenitude, é importante a colaboração efetiva dos setores embarcadores, transportadores e securitários, canalizando informações para os organismos de segurança pública.
A repressão qualificada, seja pelos órgãos de segurança pública e órgãos de fiscalização (federal, estadual ou municipal) é de suma importância no confronto à criminalidade, principalmente quando se trata de organização criminosa, corrupção e lavagem de dinheiro. A estratégia de ‘seguir o dinheiro’ (do inglês; follow the money) é a forma incisiva de investigação, além de servir de prova relativa ao crime e ao criminoso.
De que forma avalia a questão do roubo de carga em São Paulo e Rio de Janeiro, já que juntos os estados são responsáveis por 85% das ocorrências no país?
São vários os aspectos que podem demonstrar ou justificar esse índice, mas que de uma forma ou outra não indicam ausência ou ineficácia da segurança pública. Temos os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro como centros industriais, de população, de consumo, de distribuição e circulação de mercadoria, de transporte, de importação, exportação, etc. Assim, inicialmente, compreende-se o índice apresentado.
Quando se apresenta a análise comparativa do roubo de carga entre os países, sempre pergunto: o que é roubo de carga na Inglaterra? Na Alemanha? Na Itália? Na África do Sul? …Não se pode comparar sem ter um padrão estabelecido. Se aqui no Brasil não temos uma definição de ‘carga’ para se registrar um crime de roubo de carga, o que dizer quando comparar com outro país.
Além de roubos de cargas, temos observado casos de saques após o tombamento de um veículo. Existe uma cultura de que a carga tombou, ela não tem mais dono. O que fazer para mudar este entendimento da população?
Infelizmente, a cultura que essas pessoas têm é a denominada ‘Lei de Gerson’, [princípio em que a pessoa ou empresa obtém vantagens de forma indiscriminada, sem se importar com questões éticas].
A nossa legislação afirma que “Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso fortuito… deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente… ” é crime.
Portanto, não se trata de desconhecimento por parte dessa pessoa do ato ilegal que está praticando, mas sim da ideia de impunidade. A educação é o principal instrumento de formação do indivíduo e, por isso, deve estar cada vez mais presente na sociedade, ensinando direitos e deveres.
Como ampliar a integração entre as forças de segurança e o setor privado e de que maneira isso pode fortalecer o combate ao roubo de cargas?
As palavras integração e cooperação são frequentemente expressadas pelas autoridades públicas, representantes das empresas e por toda a sociedade, mas efetivamente não são aplicadas.
Ainda prevalece o entendimento que a informação que detenho não pode ou deve ser compartilhada. Muitos detêm os dados, as informações, os registros, etc. Mas poucos compartilham. As vaidades pessoais e institucionais, e aí incluo as empresas e sociedade civil, quando se trata de segurança pública, devem ser eliminadas, prevalecendo o espírito coletivo com o objetivo de um bem comum de toda a sociedade.
Pode nos falar um pouco sobre o PROCARGA? Com qual finalidade ele foi criado?
O PROCARGA, foi instituído no Estado de São Paulo nos termos da Resolução 284, de 26 de agosto de 1997, com “a finalidade de disciplinar a atuação das Polícias Civil e Militar na repressão dessas infrações penais”. O Programa introduziu um novo procedimento a ser adotado pelas instituições de segurança pública, na racionalização de recursos, condições e ações das unidades especializadas e de base, especificamente nesses delitos contra o sistema de transporte de carga.
Trouxe a expertise que faltava aos Policiais, integrando-se com outros agentes, públicos (Academia da Polícia Civil, Instituto de Criminalística, Secretaria da Fazenda, Receita Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Ministério Público, Procuradoria do Estado etc.) e privados (indústrias, comércios, transportadoras e seguradoras).
Hoje o PROCARGA funciona em quais estados? Pode se tornar um programa nacional?
O Estado de Goiás tem um programa com as mesmas características do PROCARGA de São Paulo. Agora, o Brasil já detém uma estrutura normativa, sendo que, com relação aos crimes de roubo de carga, num comparativo com o PROCARGA, temos a Lei Complementar n° 121, de 2006.
Essa determinação criou o Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão ao Furto de Veículos e Cargas, sendo que, somente em 2015, foi regulamentada por meio do Decreto n° 8.614, o qual instituiu a Política Nacional de Repressão ao Furto e Roubo de Veículos e Cargas e passou a disciplinar a implantação deste Sistema.
Diante disso, o PROCARGA já é um ‘programa nacional’, porém necessitando ser efetivamente implantado, em todos os aspectos.
Qual mensagem o senhor gostaria de deixar para os nossos leitores?
O roubo de carga, atualmente ultrapassa os limites territoriais, sendo praticado por organizações criminosas. A prevenção, a fiscalização e a repressão devem ser qualificadas. Não se admite mais o Estado ser apenas reativo, quando deveria ser preditivo.
Que o PROCARGA ou o Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão ao Furto de Veículos e Cargas não sejam mais uma nomenclatura concebida pela ânsia burocrática, mas sim uma mudança de paradigma nas iniciativas de segurança pública e privada, introduzindo mecanismos de organização e renovação típicos das redes que melhor ligam pessoas, necessidades e ideias.
Assim, permita finalizar com esse entendimento: para o combate ao roubo de carga é preciso desconstruir conceitos e construir soluções.
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