A nova legislação determina mudanças nas regras para o seguro de Responsabilidade Civil no transporte de cargas
No transporte rodoviário de cargas, a empresa transportadora é responsável pela carga que está transportando. Então, por que não ser a responsável pelo seu próprio seguro? Seria o que realmente faz sentido.
Acontece que a legislação que regia o assunto, até dezembro do ano passado, — a Lei 11.442 de 2007, trazia a possibilidade de o embarcador estipular a apólice do seguro de RCTR-C (Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Carga) para o transportador, isentando-o de fazê-lo, e com isso trazia também as Cartas de Dispensa de Direito de Regresso (as DDRs). Dessa forma, a prática se tornou recorrente no mercado.
As DDRs
Só que embora as DDRs tenham seu valor em contrato, na realidade seus efeitos acabaram inúmeras vezes sendo contestados. Se o transportador não cumprisse o Plano de Gerenciamento de Risco (PGR) do seu cliente, meticulosamente, ele corria o risco da seguradora não ressarci-lo pelo sinistro; por conta de regras amplas e com interpretações subjetivas.
“O que era de responsabilidade do transportador, passou a ser contratado pelo embarcador, junto ao seu corretor. Dessa forma, o transportador foi sucumbindo as Cartas de DDRs”, conta Adauto Bentivegna Filho, assessor jurídico do SETCESP, lembrando que, um transportador de carga fracionada, leva no veículo diferente tipos de cargas e assim, era obrigado a obedecer vários PGRs de diversos clientes.
A jornada até a aprovação
Com isso as empresas de transporte ficaram muito vulneráveis às ações de regresso, e essa demanda começou a chegar nas entidades, que passaram a buscar uma correção na legislação.
Primeiro, as expectativas de mudanças surgiram com o PL 2080 de 2015, que não avançou. Anos mais tarde, as atenções se voltaram para a possibilidade da aprovação do Marco Regulatório do Transporte, isso em meados de 2018.
“No capítulo que tratava dos seguros de carga, o Projeto de Lei (PL) denominado Marco Regulatório do TRC, contou inclusive, com o envolvimento da Pamcary, que colaborou com sua reconhecida competência”, diz Ricardo Miranda, CEO da corretora, falando que apesar disso, o PL apresentado na Câmara dos Deputados, acabou não prosperando.
Depois de muitas viagens à Brasília, os representantes do setor foram recebidos pelo Ministério da Infraestrutura do antigo governo, e solicitaram uma ressignificação dos seguros de responsabilidade Civil do Transporte, que trouxesse para o transportador, além da segurança financeira, a jurídica.
A pasta construiu um texto, e no apagar das luzes de 2022, o presidente na época, Jair Bolsonaro, assinou a MP 1.153.
MP 1.153 e a Lei 14.599
“A MP tem força de Lei, porém se não for votada pelo Congresso Nacional, em um prazo de 60 dias, prorrogável por igual período, ela expira. E o setor trabalhou forte para aprová-la na Câmara e no Senado, tanto as entidades empresariais, quanto as profissionais, se mobilizaram diante dessa causa”, contou Bentivegna.
“A cada abordagem no Congresso, reforçávamos que era uma responsabilidade em nome do transportador, porém, não era ele quem contratava, e que era preciso corrigir algo que foi distorcido ao longo do tempo”, descreveu Marcelo Rodrigues, vice-presidente do SETCESP.
Com o aval do Congresso, as atenções foram voltadas à assessoria da presidência. As entidades conseguiram uma audiência com o presidente em exercício, Geraldo Alckmin, porque o presidente Lula não estava no país.
Novas explicações foram dadas e o então presidente entendeu a legitimidade do transportador ter a contratação do seu próprio seguro. Assim, no dia 20 de junho deste ano, foi promulgada a Lei 14.599, que trata, dentre outras coisas, do Seguro de Responsabilidade Civil no transporte rodoviário de cargas.
“A união de todas as entidades do TRC, foi fundamental para o êxito desse pleito na Câmara dos Deputados, no Senado e no Executivo Federal. Todos lutaram por um mesmo ideal, trazendo de volta a legitimidade dos seguros”, considera Rodrigues.
O que diz a Lei
A Lei 14.599 também trata do exame toxicológico e dos aspectos das funções dos assessores de infraestrutura. Quanto à responsabilidade civil do transportador, em resumo, ela torna obrigatório pela empresa de transporte a contratação dos seguintes seguros:
- Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Carga (RCTR-C);
- Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário por Desaparecimento de Carga (RC-DC); e
- Responsabilidade Civil de Veículo (RC-V).
Não podendo nenhum deles ser substituído por Carta de Dispensa do Direito de Regresso.
“A nova Lei devolve ao transportador sua livre escolha para a contratação da seguradora que melhor lhe atenda. Está de volta às suas mãos a gestão dos seguros”, reconhece Adriano Depentor, presidente do Conselho Superior e de Administração do SETCESP.
Os seguros
Antes, a obrigação do transportador recaia somente sobre a contratação do RCTR-C, realizado para cobertura de perdas ou danos causados à carga transportada, em consequência de acidentes com o veículo, decorrentes de colisão, de abalroamento, de tombamento, de capotagem, de incêndio ou de explosão.
Já o RC-DC, tinha o ‘F’ de facultativo na sigla, mas agora é obrigatório para cobertura de roubo, de furto simples ou qualificado, de apropriação indébita, de estelionato e de extorsão simples ou mediante sequestro sobrevindo à carga durante o transporte.
Enquanto isso, a novidade mesmo na atividade de transporte rodoviário de cargas foi a obrigatoriedade do seguro de RC-V, que tem por intenção acobertar danos corporais e materiais causados a terceiros pelo veículo automotor.
O RC-V não precisa ser necessariamente por veículo, a apólice pode abarcar toda a frota da empresa de forma globalizada com valor mínimo de cobertura de 35.000 DES (Direito Especial de Saque) para danos corporais e 20.000 DES para danos materiais.
“Outro fato importante é que os seguros devem ser contratados mediante a apólice única para cada ramo de seguro, sendo os mesmos vinculados ao RNTRC (Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas) da transportadora”, orienta Bentivegna.
Os seguros de RCTR-C e RC-DC, terão que estar vinculados ao Plano de Gerenciamento de Riscos (PGR), que será estabelecido de comum acordo entre a transportadora e sua seguradora.
O que segundo Bentivegna é muito positivo, “pois os planos de gerenciamento de riscos passarão a serem mais factíveis com a realidade da logística da carga, levando em consideração o seu manuseio, a sua segurança, rota mais apropriada e os equipamentos embarcados. Deixando a gestão de risco mais racional e mais produtiva”.
O assessor lembra que o embarcador até poderá exigir obrigações ou medidas adicionais em relação à operação ou ao gerenciamento do risco, no entanto, terá que arcar com todos os custos e despesas inerentes.
Outro fato que merece ser destacado, é que os seguros de RCTR-C e de RC-DC devem ser obrigatoriamente contratados pelo emissor do conhecimento de transporte e do manifesto de carga, que é em regra, a transportadora. Sendo que o Transportador Autônomo de Carga (TAC), ao ser subcontratado, deve ser considerado o preposto do tomador do serviço.
Contratos
No que se refere a parte do seguro, a Lei já está valendo desde o dia 30 de dezembro de 2022, pois é levado em conta a data de publicação da Medida Provisória 1.153/2022, que antecedeu a legislação, e os contratos fechados ou renovados a partir desta data precisam se adequar.
Já aqueles firmados antes do dia 30 de dezembro de 2022, continuarão valendo com as regras antigas até o final da vigência do contrato. “Imagine que uma empresa fechou o contrato com prazo de um ano, no dia 10 de dezembro de 2022, e assinou o PGR e a Carta de DDR. Então, ela deve considerá-lo até o seu vencimento, porque é um ato jurídico perfeito, e tem que ser respeitado”, explica Bentivegna.
Mercado securitário
O vice-presidente do SETCESP pontua que o setor tem critérios específicos, e por essa razão, é preciso que as empresas de transporte busquem por corretores especialistas na hora de fazer os seus seguros.
“Quando se fala especialmente nas cargas de alto valor agregado, cargas especiais, ou cargas complexas, somente um corretor especializado e ambientado com a operação da transportadora conseguirá saber quais as necessidades principais, para solicitar a melhor cobertura”, indica Rodrigues.
Por sua vez, as empresas de seguro e corretoras, vem se preparando para ofertar as novas as demandas previstas na Lei, como o RC-V contratado por viagem (spot), em casos de subcontratação do TAC.
Com a convicção de que as novas regras trazem de volta a harmonia entre embarcadores e transportadores, o CEO da Pamcary afirma que a corretora não foi surpreendida, estando preparada, para oferecer as coberturas necessárias aos seus clientes, inclusive, tendo já investido em processos operacionais, em tecnologia, e no treinamento de recursos humanos.
“Como tem ocorrido, desde quando foi fundada, a Pamcary esteve à frente de um movimento importante para a atividade de transportes rodoviário de cargas, e segue trabalhando em apoio técnico e jurídico às entidades do TRC, nas regulamentações que devem ser elaboradas pela SUSEP [Superintendência de Seguros Privado] e ANTT [Agência Nacional de Transportes Terrestres]”, fala Ricardo Miranda.
Roberto Schimith, CEO da Insert Seguros, compartilha que durante o período de vigência da medida provisória, a companhia se planejou para desenvolver as coberturas adequadas.
“Atualmente, temos três opções de seguros para RC-DC (roubo): opção básica, intermediária e coberturas exclusivas. Até o momento, 62% dos clientes aderiram à última opção mencionada, o que reforça o interesse do transportador em proteger a carga dos embarcadores, evitando prejuízos com eventuais sinistros”, observa Schimith.
Também o Grupo Apisul, através de sua equipe técnica e comercial, oferece o suporte necessário aos seus clientes acerca das mudanças na legislação, se preciso, esclarecendo dúvidas de ordem jurídica.
“Os seguros de RCTR-C e RC-DC são comercializados pelo Grupo, em suas coberturas básicas e contam ainda, com diversas coberturas adicionais, que podem atender as demandas específicas de cada cliente, mensurados através da consultoria técnica. O seguro de RC-V já está disponível para a frota dos clientes e seus agregados e em fase final de adaptação para os TACs”, confirma a Apisul.
“É fundamental que o transportador avalie se as coberturas estabelecidas em contratação de suas apólices para atender a nova Lei são suficientes ou se outras adicionais devem ser contratadas, para garantir ao dono da mercadoria o ressarcimento, caso ocorra algum problema durante o seu transporte”, informou a NTC&Logística (Associação Nacional de Transporte e Logística) em comunicado oficial divulgado no dia 12 de julho.
Custos e negociações
A NTC&Logística também sugere que as empresas em suas planilhas de custos contemplem mais um novo componente tarifário: a TSO (Taxa de Seguro Obrigatório).
“Será preciso negociar com os clientes que tem suas apólices próprias. É um momento de transição”, reforça Depentor, admitindo que essa adequação levará um tempo, mas que a Lei, é sim, um motivo para se comemorar.
O diretor comercial da TransAtila, Thiago Lima, revela que a transportadora renovou os contratos que incluem as DDRs no fim do ano passado, e já imagina que este ano, terá que ter jogo de cintura para conseguir precificar o seu serviço, utilizando a nova taxa.
“Entendo que a Lei vem para nos proteger, melhorar a parte civil, entre a transportadora e a sociedade. Só que agora, precisaremos partir para uma renegociação”, explica falando que, muitas empresas embarcadoras consideram ainda a DDR válida e querem se valer dela.
“Há uma dificuldade comercial nessa negociação, mas enquanto entidade, nós estamos apoiando os transportadores nos argumentos para justificar ao seu cliente a existência de um novo componente tarifário básico”, afirma a coordenadora de projetos do IPTC, Raquel Serini.
Ela esclarece que antes, as empresas tinham um gasto médio de 14% reservado do faturamento, para pagar estas despesas. Visto que, cumpria-se todos os itens previstos nos PGRs, o que às vezes incluía iscas, escoltas, monitoramento, rastreamento, entre outros.
“A partir de agora, além do transportador ter uma gestão na questão dos PGRs, o que é um ganho para o setor e para as empresas, essa taxa que é a TSO, vem para ressarcir as despesas com os seguros. No fim das contas, será mais vantajoso para o transportador”, avalia a economista.
Para Shirlei Pacchioni, supervisora comercial na WRJ Logística, a lei foi positiva porque padroniza as negociações. “Nós trabalhamos com vários tipos de cargas. Com alguns de nossos clientes, estabelecemos em contrato as DDRs, outros já são acobertados pelo nosso próprio seguro. O bom agora, é a gente saber o que cobrar, igualmente para todos”, fala.
A presidente executiva do SETCESP, Ana Jarrouge, chama a atenção para os transportadores não aceitarem nenhum tipo de subterfúgio que possa desconfigurar o que já foi determinado. “A Lei traz um dever, mas também assegura um direito às transportadoras. Não abram mão disso”, aconselha ela.
“É muito importante que o transportador averbe essas três modalidades de seguros, para ele não ficar fora da legislação, e com certeza, repassar o custo ao seu embarcador, porque ele não deve assumi-lo”, comenta Depentor.
O presidente do SETCESP acrescenta ainda, “havendo um sinistro com o veículo, com terceiros ou com a carga, não há mais discussão, a regra é clara: a responsabilidade é do seu seguro. E, se não tiver o seguro? Será da transportadora que assumiu o risco. Lei a gente não questiona, a gente cumpre”, avisa definitivamente.
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